Por que dizer "tomei cloroquina e por isso me curei", como faz Bolsonaro, é uma "falácia" e não prova nada

Por Redação em 27/08/2020 às 09:01:57

 

Isso é o que se chama de "evidência anedótica", informal, sem valor científico. E o erro de lógica usado para se chegar nessa "evidência" é uma falácia lógica, chamado também de correlação coincidente ou, em latim, post hoc ergo propter hoc ("depois disso, logo, causado por isso"), explica o cientista David Grimes, autor do livro The Irrational Ape, sobre desinformação relacionada a ciência.

Essa falácia lógica é construída a partir da ideia de que dois eventos que acontecem em uma sequência cronológica estão ligados por meio de uma relação de causa e efeito. Outros exemplos: "Eu espirrei e, segundos depois, a luz caiu". A luz caiu por que eu espirrei? "Hoje de manhã nós dançamos. Mais tarde, choveu." Choveu porque dançamos?

"A gente tem uma pré-disposição para pensar de maneira temporal: "se aconteceu A e depois aconteceu B, logo B foi causado por A'", diz a microbiologista Natalia Pasternak, pesquisadora do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do instituto de divulgação científica Questão de Ciência. "É intuitivo pensar assim. De maneira genérica, não parece que está errado. O método científico é que é contraintuitivo e precisa ser aprendido."

"As pessoas não param para pensar que existem diversos outros fatores. Uma pessoa pode ter melhorado por causa do remédio, apesar do remédio, ou por causas nada a ver com o remédio. As pessoas atribuem facilmente relações de causa e efeito que não estão lá."

Se João tem uma dor de cabeça, toma um banho, bebe água, toma um chá de ervas, toma um medicamento, bebe suco de laranja, sai para caminhar, tira uma soneca… Qual dessas variáveis ajudou a curar a dor de cabeça? Ou então, será que nenhuma teve efeito para a dor de cabeça, que passou sem interferência dessas ações?

Seres humanos tendem a ser "cegos" para as diferentes variáveis, além de ter vieses de confirmação quando querem acreditar que determinada intervenção ou medicamento funciona para alguma doença, observa Grimes.

Mas casos individuais ou isolados não têm qualquer valor científico.

É porque sem controlar variáveis não dá para chegar à conclusão de que alguém melhorou por causa de um medicamento ou outra intervenção. "O que mais a pessoa fez nesse período da doença? A doença pode ter passada sozinha, como muitas passam. A pessoa pode ter começado a se alimentar melhor, parou de se alimentar com algo que estava fazendo mal e nem sabia, começou a dormir melhor, saiu de um período de estresse. Ou então, houve uma resolução espontânea da doença", enumera Pasternak.

Ela cita seu próprio exemplo: "Eu tive asma infantil, que passou na fase adulta. Imagina que depois de 5 ou 6 anos tendo uma criança asmática, minha mãe decidisse que ia me dar homeopatia. E, depois de um ano, a asma sumisse. Qual seria a conclusão da minha mãe? Que a homeopatia curou minha asma, quando provavelmente foi a puberdade, já que é uma doença tipicamente infantil".

"Isso vai dando força para essas narrativas de evidências anedóticas, com pessoas dizendo: "eu conheço uma criança que tomou homeopatia e a asma passou". Essas narrativas são muito fortes na sociedade porque são depoimentos de amigos, conhecidos, que viram isso acontecer", diz Pasternak. "A evidência anedótica sempre tem valor sentimental, emocional que é muito mais forte."

Nosso cérebro responde ao apelo das experiências pessoais, opina o comunicador de ciência Jonathan Jarry, do McGill Office for Science and Society, organização dedicada ao ensino de ciências na Universidade McGill, em Montreal, Canadá. "É por isso que a maneira como contamos histórias em livros e filmes funciona tão bem. Nós amamos uma boa história", diz ele à BBC News Brasil.

"Mas quando se trata de avaliar se um tratamento funciona ou não, as histórias podem confundir em vez de educar. Precisamos recorrer à ciência para remover as variáveis ??contaminantes e chegar a uma resposta objetiva."

Para Grimes, "os humanos têm dificuldade de encontrar padrões". "As coisas mais vívidas para nossa memória são as anedotas, enquanto estatísticas médicas são entediantes e secas", diz.

As anedotas, diz Jarry, podem, sim, ser usada para gerar hipóteses — que então testamos rigorosamente — , mas elas não são de forma alguma conclusivas.

Bolsonaro e a cloroquina

Erguer uma caixa de hidroxicloroquina como se ela fosse uma cura para a covid-19 e repetir que foi curado da doença por causa do medicamento, uma afirmação perigosa e sem embasamento científico, já se tornou algo corriqueiro para o presidente do Brasil.

Sua última defesa ao remédio foi na segunda (24/08) em um evento no Palácio do Planalto chamado "Brasil vencendo a covid-19", com o país chegando a quase 115 mil mortos.

Bolsonaro reuniu médicos entusiastas da hidroxicloroquina e membros do governo para uma cerimônia em defesa do uso do medicamento no combate à doença, apesar de não haver indícios de sua eficácia — e mais, haver indícios de que, pelo contrário, ela não funciona e seu uso pode trazer efeitos colaterais para pacientes.

"Não tem comprovação científica, mas salvaram muitas vidas", alegou o presidente no evento, sem apresentar provas disso. Ele disse, ainda, que observou que quem tomava o medicamento desde o início tinha "mais chance" de sobreviver. Citou seu exemplo pessoal e o de "mais de dez ministros que se trataram com a medicação". "Nenhum foi hospitalizado. Então, está dando certo."

A fala de Bolsonaro é o exemplo concreto do que é uma evidência anedótica. Primeiro, a grande maioria das pessoas com a covid-19 sobrevivem. Como saber que o presidente não sobreviveria de qualquer forma sem a hidroxicloroquina? Além disso, ele foi tratado só com hidroxicloroquina? Seus ministros também? E se não tivessem tomado nada? Como estabelecer uma correlação direta sem um estudo clínico sério? Caso Bolsonaro tenha tomado suco de laranja durante o tratamento, seria possível dizer que foi o suco de laranja que o curou?

"A covid-19 é uma doença com 90% de taxa de cura espontânea. Ou seja, a doença pode se resolver sozinha, mas o mérito vai para o remédio?", questiona Pasternak.

"Dizer: "Eu tomei cloroquina e, portanto, me curei" está errado. As duas coisas podem ter acontecido simultaneamente, o que não quer dizer que uma foi a causa da outra. Não existe relação de causa e efeito."

Aliás, em relação a hidroxicloroquina, já estamos em uma etapa de dizer "nós já demonstramos que não tem efeito para a covid-19, e que ninguém se cura desta doença por causa desse medicamento", observa Pasternak. Existem diversos estudos que trazem evidências de que a hidroxicloroquina não tem eficácia para a covid-19.

Por não observar benefício do medicamento para a redução da mortalidade da covid-19, a OMS (Organização Mundial da Saúde) interrompeu os estudos com a cloroquina. A Sociedade Brasileira de Infectologia disse considerar "urgente e necessário" que a hidroxicloroquina "seja abandonada no tratamento de qualquer fase da covid-19", e sugeriu que o governo interrompa sua oferta.

Para Jarry, há consequências perigosas para quem acredita nessas anedotas — principalmente quando são contadas e repetidas pelo presidente da República.

"As pessoas podem passar a tomar esse medicamento como profilaxia, por exemplo, e deixar de adotar o distanciamento físico", diz. Elas também podem tomar o medicamento sem acompanhamento médico, e terem efeitos adversos como os relacionados ao sistema cardiovascular — o medicamento pode acelerar o ritmo do coração — além de outros, como retinopatias e hipoglicemia grave.

Para ler a matéria completa na BBC Brasil clique aqui.

Publicado primeiro em Banda B » Por que dizer "tomei cloroquina e por isso me curei", como faz Bolsonaro, é uma "falácia" e não prova nada

Fonte: Banda B

Tags:   Saúde
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